Claudia Sperb, 30 anos de arte

A mostra conta com 35 obras em xilogravura de diferentes fases da carreira da artista e tem a colaboração textual de expressivos nomes da cena artística e convidados especiais: Alice Urbin, Arlete Santarosa, Armindo Trevisan, Cíntia Moscovich, Edgar Mai, Gal Opido, Helena Thonnigs, Isabela Schiaffino Sperotto, Jards Macalé, Marcelo Delacroix, Maria Tomaselli, Maristela Salvatori, Rejane Zilles, Renata Rubim, Romero de Andrade Lima, Rubem Grillo, Vagner Cunha e Walter Karwatzki. A reunião desses olhares criativos em torno da artista, expande a visão e democratiza o conhecimento sobre a sua produção, aportando múltiplas e novas narrativas a sua poética.

A exposição de Cláudia Sperb integra a quarta Seleção Ecarta,  uma atividade especial da Galeria Ecarta que a cada ano destaca um artista.  Expressivos nomes da produção visual contemporânea  do Rio Grande do Sul integraram as edições anteriores como Mário Rönhelt (2018), Clóvis Dariano (2019) e Milton Kurtz (2020).

a artista

Cláudia Sperb (Novo Hamburgo/RS, 1965) Artista plástica e professora de artes. Vive em seu atelier-parque, Caminho das Serpentes Encantadas, em meio à natureza nativa do município de Morro Reuter/RS. Desenvolve mosaicos coloridos, xilogravuras e outras técnicas. Graduada em artes plásticas pela FEEVALE-RS, com várias especializações em artes visuais e história da arte, no Brasil e exterior. Cursou cerâmica em Valência/Espanha, realizou viagens de estudo a Índia, desde quando passou a se dedicar à gravura, especialmente a xilogravura. Residiu e trabalhou em São Paulo/SP e já expôs em diversos Museus no país. No exterior, ainda participou de exposições coletivas na Alemanha, Argentina, Austrália, Bélgica, China, Cuba, Japão, Egito, Estados Unidos, França, Polônia e Portugal. Possui obras em acervos públicos e privados no Egito, Argentina (Buenos Aires), Índia (Calcutá) e Polônia (Biala). Recebeu as seguintes premiações: prêmio Açorianos de Artes Plásticas – Destaque Gravura/2006; prêmio Exposição, 16.º Salão de Artes Plásticas da Câmara Municipal de Porto Alegre; prêmio Aquisição – Salão de Arte do Pará/2004.

textos

Relicário Jardim das Serpentes Labirinto Seres Encantados

[Sem título, 2004, xilogravura, 39,5 x 28,5cm]

TEMPO
Feitiço Flor Sem Cor Colorido
tempo
A queda do céu
Visita Xamã Pedaços Cacos Quebra-Cabeças
Aldeia Atravancamento Capital
T e m p o
Flor Serpentear Flor na boca Por acaso Um dia
Casamento Nascimento
Floresta Clima Doença
Genocídio
Extermínio
T e m p o
Destruição Cruzamento Serpente Sopro de Vida Língua
Desejo Espírito Voz Livramento Aprisionamento
Fantasmas
Entranhas pele escamas Réptil Ancestralidade Lagarto
Sensores do tempo do ambiente
Plantas mágicas
Casa de espíritos
Vigilância
Sem trégua
Cantos cânticos confins da floresta dança
Pensamentos
Memória
TEMPOTEMPOTEMPOTEMPOTEMPOTEMPOTEMPOTEMPO
Serpente
Sou sua presa
Rompimento

Cláudia Sperb, uma autêntica artista

[Matriz para xilogravura, 2011, 100 x 40 cm]

Raras artistas têm a vitalidade e persistência de Cláudia Sperb.

Não é tarefa fácil caracterizar, em poucas palavras, a trajetória notável dessa artista gaúcha, tanto pela qualidade quanto pela amplitude de sua atuação no cenário de Artes Plásticas brasileiro.

Conheci a Cláudia nos anos 90, tempo em que o Núcleo de Gravura do Rio Grande do Sul ainda existia, e afirmo sem medo de errar que ela sempre demonstrou coerência no que faz.

Nestas mais de duas décadas que conheço a artista, identifiquei três áreas de atuação incríveis: na Xilogravura, na Arte em Mosaico e na idealização e gerenciamento do Caminho das Serpentes Encantadas, em Morro Reuter.

Sua dedicação e paixão à Arte é grandiosa, e todos seus esforços merecem ser reconhecidos com louvor e são visíveis em todos os projetos nos quais atua.

Claudinha, como carinhosamente a conhecemos, é também uma guerreira versátil: consegue superar todas as dificuldades, incluindo as financeiras e de logística, ao criar e manter o parque numa cidade do Interior, ao mesmo tempo em que nunca deixou de trabalhar nas suas xilos e mosaicos que por si só, já são tarefas desafiadoras. Suas xilos, em enormes dimensões, impressionam pelo suporte de madeira aparentemente incompatível com a técnica usada.

Certamente, a trajetória de Cláudia Sperb é marcada pela lida competente com permanentes desafios de toda ordem com obsessão e criatividade. Uma artista completa.

[Árvore da Paixão, xilogravura, 2004, 163 x 43 cm, Acervo do Macrs]

Nas últimas décadas, os artistas visuais, que produzem obras de arte nas assim ditas “formas tradicionais”, têm sido pouco valorizados, como se suas obras já não pudessem interessar às novas gerações. Estou convencido de que é preciso voltar a repensar o conceito de arte visual.

O mundo, sem dúvida, evoluciona. Em determinados períodos suscita novos meios de expressão que podemos revolucionários. Pessoalmente, porém, penso que a Arte Visual não consiste numa troca-troca de objetos e expressões simplesmente objetuais, mas antes numa oferta ampliadora de emoções estéticas e artísticas.

Fui admirador, e ainda o sou, da produção da Cláudia Sperb.

A Cláudia distingue-se, em sua produção artística, por um sentimento muito grande de finura.

Fixemo-nos na sua xilogravura exposta, que, tematicamente, faz alusão ao “Caminho das Serpentes” que leva o visitante ao seu atelier.

Trata-se, obviamente de uma obra figurativa, porém, o importante é o que artista consegue sugerir com sua visualidade aparentemente esgotada. Cláudia permanece presa até certo ponto à sua temática, e o que se vê, antes de mais nada, no primeiro plano, é uma serpente.

Quem, porém, se dispõe a fixar com mais empatia, a sua xilo verá que Cláudia se interessou não tanto em reproduzir um ser coleante e venenoso, mas interessou-se em realçar o que esse ser (que muitas pessoas acham repulsivo) possui de rítmico e de estético. Não dizia o grande escultor do século XX Constantin Brancusi que os sapos eram belos, e possuíam excelência artística?

Eu acho que devemos renovar nosso olhar sobre a Natureza, e tornar a reencontrar nela, graças ao novo sentido da Ecologia, desde a alusão direta dos seres vivos, até seu simbolismo, que pode ser renovado.

A serpente é para os cristãos símbolo do mal, mas é também, em medicina, sinal de vida.

Falei anteriormente sobre a finura de Cláudia. Ela não é uma artista revolucionária, em termos estritos. Ela é, sim, uma “evolucionária”, na linha de Darwin e suas Espécie. Nas suas xilos podemos experimentar autênticas emoções estéticas (as da sensibilidade despertada e reelaborada)) e emoções artísticas (as da sensibilidade de produção concreta).

Creio que, no tocante à Arte, precisamos ser mais humildes e assimilativos. O que importa em Arte é tentar sentir o que se vê, e ver o que se sente.

No caso da Cláudia Sperb, sinto o que talvez pouca gente sente: que suas cobras são belas porque não são venenosas. Uma das funções da Arte Visual é despojar os seres de sua aparente agressividade, humanizando-os, inserindo-os no imaginário dos seres racionais.

Parabéns, Cláudia. Continuo a ser um apreciador de tuas produções artísticas, mesmo sabendo que a força de tuas xilos reside – não na mimesis servil da reprodução fotográfica, mas numa discreta e sugestiva alusão aos seres que poderiam agredir-nos e fazer-nos mal, mas que também podem ser vistos – por que não – à luz da Criação que o Gênesis celebra.

Capicua

[Sem título, 2004, xilogravura, 15/20, 48 x 180 cm]

Todas as serpentes se encantam.

E todos os caminhos conduzem

ao mesmo fio,

aquele que tece,

de forma contínua,

o mesmo começo.

Na chegada,

que é também

partida,

todo o ninho se enrosca

— boca e rabo, presa e cauda —

sucessivo final do mesmo início.

Todos os couros são pele,

todas as escamas se fecham,

todo o diferente é igual,

toda a chegada é força:

todas.

Serpente encantada,

forma jubilosa,

que se concentra em pedaços de cor

e de tanta luz,

tanta,

na língua sinuosa

dos teus caminhos

seremos os sinais

de fim ou de início

de partida ou chegada.

Tudo lindo:

tudo é caminho.

[Sem título, 2013/2018, xilogravura, P.A., 65,3 x 50 cm]

Flores… Seriam como as magnólias, a primeira flor do planeta há 140 milhões de anos? Seriam Vegetal e ou Plantae, um dos cinco reinos da natureza? Seriam as briófitas ou as pteridófitas, junto aos ambientes aquáticos? Seriam algas, fungos, líquens, parasitas, musgos ou epífitas? Seriam seus verdes clorofila, absorvendo a luz e refletindo cor? Seriam hermafroditas ou bissexuais, masculinas, femininas ou unissexuais? Seriam as suas sementes gimnospermas ou angiospermas? Seriam espinhos ou acúleos, as suas estruturas resultantes de modificações foliares? Seriam árvores, arvoretas, arbustos, cactos, cipós, euphorbias, ervas, flora, suculentas, trepadeiras, vegetação? Seriam elas a realizarem a fotossíntese, através da absorção da energia solar e a liberação de oxigênio? Seriam da Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa ou Pantanal? Seriam listadas pelos históricos botânicos Auguste de Saint-Hilaire e Padre Balduíno Rambo? Seriam carnívoras, comestíveis, aromáticas, medicinais, ‘pancs’ ou ornamentais? Seriam elas fertilizadas por nitrogênio, fósforo e potássio? Seriam de ambientes aquáticos, dos campos, estepes, florestas, desertos, restingas ou savanas? Seriam nativas, exóticas ou invasoras? Seriam do Jardim do Éden, tornando-o paraíso; dos Jardins Suspensos da Babilônia, uma das sete maravilhas do mundo antigo; do Kew Gardens e sua maior coleção botânica do planeta; do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, pioneiro no Brasil no início do século XIX; dos canteiros não regulamentados de Friedensreich Regentag Dunkelbunt Hundertwasser; da lua em sororidade com Margaret Mee; da brasilidade e paisagismo de Burle Marx; de Inhotim, o arte botânico contemporâneo; do Jardim Lutzenberger, a significativa coleção que cobre de verde o terraço na casa do poeta?

Sperb, Cláudia… São mãos que polinizam, traços férteis donde germinam vidas. Do alto, entre ventos, nuvens, terra e céu, árvores e pedras, fecunda a madeira e o papel, dando à luz seres, plantas, flores e… e jardins! Num universo particular, onde as sementes perpetuam as espécies, formas surgem como alimento, nutrição e inspiração, multiplicando os olhares e os sentimentos. A biodiversidade vira encantamento, onde cada risco e ponto carregam células interligadas umas às outras, unidas para formarem um corpo único. Leves, lúdicas, saudáveis, naturais, pétala à pétala, folha à folha, mosaico a mosaico, desenvolvem-se em coberturas orgânicas e em movimento. Raízes em substratos de signos, significados, mensagens e por quê? Por que é total deleite, entre o zen e o caos, levita-se com as pétalas, dançando com os espinhos. Tons, cores, aromas e formas, num movimento pulsante e evolutivo, são sazonais ou de todos os tempos, de uma ou das quatro estações, em comum são seres livres como o ar e em direção à luz. A arte que permite, uma ou todas as possibilidades, sob o sol e a chuva, onde as floreiras são sem limites e os canteiros infinitos horizontes, uma a uma, todas em conjunto, convidam o olhar a um lugar para dialogar, brincar, passear, amar, sonhar, se apaixonar e… e viver o Jardim Claudia Sperb!

O que nos chama quando emana?

Adolf Loos (1870-1933), com formação e ação multidisciplinar nas áreas de expressão visual, literatura e arquitetura, cita que a cruz é o primeiro objeto de adorno de todos os tempos, onde o homem na sua ação rupestre vinca a superfície da caverna com dois traços, onde o vertical representa o movimento de penetração e o horizontal o de acolher este movimento pela mulher como se fossem vetores de forças.

Um ritual visando sucesso em fertilizar encerrava o significado destes gestos permitindo o compartilhamento com seus próximos, tornando-o permanente e inaugurando um ambiente palpável de reflexões que futuramente chamaríamos de Arte.

Provavelmente outros grupos humanos, contemporâneos daquele momento, que o vissem não o entenderiam, pois seria um enigma que se origina de um impulso primal e não imagens que procuravam representar verossimilhanças com bisões, corpos humanos, etc., seria uma percepção sensorial abstrata, mas embasada num simbolismo concreto.

A descoberta de uma estela de grano diorito esculpida no Egito Ptolomaico conhecida como Pedra de Roseta foi o estopim de acesso ao universo que as inscrições discorriam sobre o estado das coisas e fazeres daquele ambiente civilizatório…

O que era mistério tornou-se decodificado, perdendo o envoltório extra lúdico e ganhando dotes de arte aplicada.

O artista pop Prince fez o caminho inverso quando optou por um símbolo impronunciável abandonando o código fonético que o identificava e delegando a um sincretismo geométrico seu acoplamento aos sistemas de reconhecimento como humano.

O filme dirigido por Peter Greenaway, The Pillow Book, discorre sobre caligrafias corpóreas em várias línguas como ornamento em rito erotizante e lida com o trânsito plástico entre carácteres de origem ideográficas orientais e outros ocidentais e entende o corpo como papiro vivo, body art, podendo ou não ser inteligível enquanto texto, ou seja, a escrita ganha expressão coreográfica enquanto registro gestual per si.

“Meu Deus é o desconhecido, quanto mais eu sei que menos sei, mas perto do divino estou” diz Cláudia Sperb.

O Mistério talvez seja a força motriz da humanidade e é por esta trilha que a obra nos atinge, quando a partir de xilogravura impressa em tecido, Cláudia nos oferece uma palavra oriunda de um texto islâmico sublinhada por uma cinta de papel costurada, deslocando nosso saber ocidental ao desconhecido pelo conjunto suporte- palavra.

A Mesopotâmia foi o berço da linguagem escrita, denominada cuneiforme, a partir da incisão com cunha em argila ou pedra há mais de 5000 anos e diferentemente do kanji são símbolos e não ideogramas resultantes desta operação, um processo de abstração na origem da linguagem e é este estímulo que Cláudia explora e elege esta palavra, núcleo de sua obra.

O mistério, a forma como emanente, gestalt silenciosa.

A família formal desta palavra conversa com as serpentes encantadas tão frequentes nos trabalhos da artista como se um corpo de uma serpente alinhavasse o conjunto gráfico e assim confirmando que o percurso autoral sempre carrega a genética do olhar que cria por mais diversos que seja o conteúdo.

Um suspense

[Sem título, 2016/2021, xilogravura colorida, P.A., 100 x 40 cm]

Como os imprevistos da vida, caminhos com espinhos, mas que dão certo no final.

Chocante e bonita de olhar ao mesmo tempo, traduz o sentimento da vida. Nos mostrando que existem muitas coisas que sustentam quem somos, através das raízes que se espalham pelo solo, cada um com seus traços de história, vida, ancestralidades que nos trazem a superfície, nascendo e crescendo.

Não importa quantos espinhos enfrentamos ou quantas coisas difíceis ou sombras enfrentamos durante nossa existência, podemos oferecer amor ou nos comunicarmos de forma bonita e colorida na ponta da nossa troca com as outras pessoas.

Sendo nossos próprios universos coloridos, mas passando aos outros inúmeros outros universos particulares. Claudia nos faz refletir sobre a importância de colorir nossas sombras e florir nossos espinhos.

As obras da Claudia parecem mágica, assim como a vida, nos envolvendo sem sentirmos em inúmeras possibilidades de ser.

As serpentes e suas mudas

Claudia Sperb retorna ao Instituto Butantan para sua terceira exposição de xilogravuras, não sem antes ter nos brindado com o belo mosaico Fragmentos e Sentimentos, instalado na Praça Vital Brazil. Agora é “As serpentes e suas mudas “, nova coleção de xilos enriquecida de cor e que nos traz uma rica sucessão de mitos e simbologias, a começar pela serpente, sempre associada ao bem, ao malo e à saúde, presente que está no bastão de Esculápio — o deus da Medicina – que por suas curas e feitos despertou o ciúme e ira de Zeus. Na serpente e em outros animais a troca periódica da pele – a sucessão de camadas – das de células subepidérmicas, que sobem, à medida que as superiores morrem e soltam-se – é associada à saúde e consequentemente à Medicina. Desse último aspecto reportamo-nos a autora e sua sucessiva expressão através das xilos, inicialmente simples, brancas, pretas, tornando-se progressivamente mais elaboradas e com cores como apresentam-se agora. Escolheu bem, desde o início o Butantan que, também ligado a saúde está em periódica muda. . . evidente nos últimos tempos com notórias mudanças nos seus métodos de produção, aprimoramento de pesquisas, desenvolvimento de recursos humanos e educacionais e que faz também sua troca, uni­cando em nova sede as Administrações do Instituto e Fundação. A presente exposição pode ser encarada através dos aspectos abordados, mas significa muito mais, pois é periódica, portanto aguardem novas mudas. E SUAS MUDAS XILOGRAVURAS de Claudia Sperb.

[Sem título, 2000/2021, xilogravura colorida, P.A., 155 x 29 cm]

Conheci o trabalho da artista Cláudia Sperb através de uma xilogravura muito criativa e linda que temos em uma parede da nossa casa desde que eu era pequena. Sempre me chamou muita atenção e se destacava entre os outros quadros.

Quando recebi o convite para fazer um texto para a exposição dela fiquei muito feliz. Mais ainda quando recebi o trabalho sobre o qual eu deveria escrever. É uma gravura incrível! São várias obras que juntas fazem uma só. É um pouco parecida com uma história em quadrinhos de flores.

Fico pensando quais foram as inspirações dela? Como veio a ideia? Será que ela fez um rascunho em um papel antes?

Há algum tempo atrás, meus pais me mostraram fotos dos mosaicos da Cláudia Sperb no Instituto Butantan, um lugar tão importante para o nosso país, onde está sendo desenvolvida a vacina contra a Covid-19. Lembrei disso porque esse trabalho parece um pouco um mosaico, por causa dos quadrinhos.

Uma das coisas que eu notei foi que tem diversos tipos de flores diferentes fazendo a arte chamativa. Outro detalhe que gostei foi as cores das flores e do fundo de cada uma delas. A gravura que temos em casa também é de flores, mas diferente desta, ela é dourada e preta.

Durante essa quarentena, comecei a prestar mais atenção na natureza e nas artes e este trabalho junta as duas coisas.

Fiquei muito lisonjeada em poder observar, refletir e escrever sobre esta gravura e sobre esta artista que admiro tanto.

[Sem título, 2004, xilogravura, P.A., 60 x 40 cm]

Sou músico e, pra mim, Claudia em seu trabalho plástico, é uma grande musicista. Cada obra dela eu traduzo em som para meus olhos. Vejo/Ouço seus materiais. Suas gravuras, quadros, esculturas, me levam a um universo imerso em imagens fantásticas. Amo a imaginação de Claudia. Ela é a cobra, cavalo e as borboletas que tanto amo.

[Sem título, 2000, xilogravura, P.A., 29,5 x 121 cm] 

As Serpentes Encantadas de Claudia Sperb nos conectam diretamente ao cordão umbilical da nossa ancestralidade, e nos convidam a embarcar numa viagem sensorial ‘’sem fim’’. Quanto mais se olha, mais se enxerga, em descobertas sobre a própria obra, sobre o mundo e sobre nós mesmos (parecido com olhar o mar). À medida que a respiração acalma e a percepção se torna mais sensível, começam a emergir novos detalhes invisíveis aos primeiros olhares. Detalhes que jamais estão ali soltos, ao acaso. Há sempre um ponto de apoio e equilíbrio em algum outro elemento oposto e complementar, que lhes conferem sentido e razão, lembrando que não estamos sozinhos. Unidade e Dualidade. E remetendo-nos ao mito do Pecado Original ou dos caduceus de Asclépio e Hermes Trismegisto, elas nos lembram que essa é também uma viagem sem volta, visto que não há como voltar atrás depois de ”morder a maçã” do Conhecimento e da Sabedoria.

Ritmos e ciclos, o constante movimento de contração e relaxamento, em ondas de tensão e repouso. Nascimento e Regeneração, a troca de pele e a busca da imortalidade. As serpentes simbolizam a força vital, energia cósmica e sexual que gera a vida. E do veneno também vem o antídoto.

As Serpentes Encantadas nos falam de Cura. E nessa eterna busca pela cura de si mesmo, o artista acaba por curar os males do mundo.

O espaço de Cláudia

[Sem título, 2000, xilogravura, 20/20, 155 x 29 cm]

Quem já esteve no Morro Reuter e percorreu o Caminho das Serpentes Encantadas se expandiu para dentro do pequeno bosque, seguindo trilhas sinuosas, até chegar a uma plataforma que convida a voar com o olhar e a alma por cima de um vale. Tudo fica imenso, por indução, mesmo sendo minúsculo, o que é mesmo a ideia de um caminho. Caminhar é seguir em frente. E o que dizer de uma xilogravura de tamanho de uma pessoa, alta e esbelta? Cláudia parece seguir sem parar com sua goiva para dentro do mato, da madeira, das fibras, das veias da vida. Normalmente predominam as curvas em suas gravuras, mesmo contidas no retângulo das pranchas, mas nesta ela ficou possuída pelo espirito construtivo, clássico, severo de um Samico, esse grande mestre da xilogravura. Até as flores se comportam dentro dos espaços que lhes foram determinados. Sim, um coletivo precisa obedecer a certas regras, para cada um poder ter seu devido lugar ao sol, com Cláudia fez com os milhares de elementos de mosaicos de seus colegas e amigos que pavimentam os caminhos trilhados por muitos. Cada flor no seu lugar.

Então, o que dizer dessa gravura em especial que é um pouco diferente? Eu diria que é uma xilo que é um mosaico e, pelo seu tamanho e formato, um caminho, abrindo espaço. Não de serpentes, mas de flores.

[Sem título, 1993, xilogravura, 50 x 57 cm, Acervo do Macrs]

Artista andarilha, como se reconhece, Cláudia Sperb deixa-se impregnar pelas imagens que encontra mundo afora. O díptico sem título, da série Santuário do desconhecido, integrou a exposição homônima que enfocou símbolos e grafias de diferentes religiões e crenças, e teve como mote a frase “Quanto mais sei que nada sei, mais perto do divino estou.”

Realizada na Índia em matriz perdida, a obra foi impressa em três etapas/cores, sobre fino papel artesanal e tinta à base d´água, apresenta composições estruturadas em triângulos ou retângulos subdivididos em triângulos e, curiosamente, foram realizadas apenas três provas/cópias de cada imagem – múltiplos desdobramentos do número três, número por si só prenhe de simbologias.

Amante da visualidade das expressões culturais populares, tais como as da literatura de cordel ou das xilogravuras das bandeirolas tibetanas, Claudia, conforme seu depoimento, busca um olhar despido de pré-conceitos e ou informações que possam macular a emoção puramente visual, constrói as gravuras com cortes secos e repetidos, resgatando os sintéticos padrões florais encontrado nas fachadas em pequenas vilas indianas e ainda sob o forte impacto de toda visualidade encontrada neste período, sobretudo no deserto do Thar onde a artista pode dormir sob as estrelas, tendo apenas um saco de dormir como proteção.

[Sem título, 2000, xilogravura, 2/20, 158,5cm x 50cm]

Um caleidoscópio de imagens precisas, contornos simétricos e estilhaços pontiagudos de espelhos como moldura da obra. A serpente como flecha conduz meu olhar para o plano imaginário de uma medusa no centro do quadro, com seus inúmeros significados simbólicos. Claudia Sperb sempre me impressiona na inventividade, na riqueza de detalhes e na força de suas imagens.

[Sem título, 1990, xilogravura, 4/4, 39 x 50 cm]

Cláudia Sperb, artista múltipla que se expressa com o mesmo talento e habilidade em duas áreas com propriedades tão distintas, como a gravura e o mosaico.

Conseguimos identificar Claudia imediatamente nos dois ofícios: quando vemos uma gravura dela, sabemos de quem é; o mesmo com os mosaicos, onde ela imprime sua marca desde sempre. E ao visitamos seu sítio maravilhoso, temos a oportunidade de uma imersão nesses dois universos de uma maneira mágica.

Dominar esses fazeres tão distintos é fascinante e arrebatador.

Minha atividade como designer de superfícies exige de mim uma avaliação constante de trabalhos que podem ser contemplados e apreciados pelas suas qualidades de composição, jogo de cores e texturas, produzidos por colegas designers, por artistas e por alunos.

A textura da gravura apresentada se destaca a tal ponto que o trabalho inteiro se transforma num resultado com forte apelo tátil, é difícil se conter e não querer tocá-la, levar os dedos numa cuidadosa investigação.

A visão que temos é rica pela soma de traços que remetem a inscrições étnicas e inspiram o olhar a perceber um resultado com características têxteis.

É um trabalho forte com marcas expressivas e cores marcantes. Mas não é uma obra dura.

Será o TAO?

(Ideograma chinês que pode ser identificado como caminho)

Rendário de Claudia Sperb

[Sem título, 2000, xilogravura, 20/20, 158,5 x 50 cm]

Na mostra IMPRESSÕES – Panorama da xilogravura brasileira, realizada no Santander Cultural, em 2004, de minha curadoria, Cláudia Sperb expôs uma tira de 30 X 650 cm. A obra foi instalada sobre um fino tablado, rente ao chão, no meio da sala. Era a representação de uma longa e sinuosa serpente, ornada internamente com segmentos e triângulos o que intensificava o zig-zag da forma, como uma linha-corpo ondulada e rastejante. Esta xilogravura remetia a outro trabalho realizado pela artista nos caminhos dos jardins do Instituto Butantã, SP, em mosaico de fragmentos cerâmicos coloridos.

A serpente constitui um tema recorrente na obra da artista.

Ofídio de significados contraditórios em diversas culturas. No nosso senso comum, pela influência religiosa, se relaciona aos aspectos negativos da peçonha e ao modo insidioso que induziu o casal humano a provar o fruto da árvore do Bem e do Mal e, consequente, queda do Paraíso. Nas antigas simbologias orientais, em especial à egípcia, a cobra representa a imortalidade, pelo rompimento de sua pele para um novo ciclo, em constante renascimento. Esta interpretação, como metáfora, pode equivaler à atividade criativa, pela busca inquietante de superação.

Ao considerar aquelas obras, cria-se um pano de fundo para avaliar o momento da artista, onde se mantem os resíduos ou rastros anteriores. O que então era ornato no interior da representação se põe, agora, como tema primordial. Da forma mutante da cobra retém-se o ritmo, a ondulação, a espiral que se envolve a si mesmo e a modulação na rígida construção do espaço e da forma.

A xilogravura brasileira se desenvolve e se expande nacionalmente integrando o Movimento Modernista e absorve duas influências singulares: o expressionismo e o universo popular em suas diversas manifestações e cores. Destaco, nesta fase, a obra de Lívio Abramo, que além da temática popular, afirma a autonomia da gravação como um calidoscópio inventivo de tessituras e criando um rico cromatismo no exíguo e sintético uso do preto e branco.

Mesmo sem ter uma referência direta à Lívio, a xilogravura de Cláudia Sperb atua na mesma direção. Em sua obra atual, a linha gravada tece a estrutura como as rendeiras tecem o bilro, de modo meticuloso, articulando os fragmentos triangulares orgânicos presentes na pele da serpente ou os cacos acidentais do mosaico, conferindo ao conjunto, uma representação onde o espaço da obra se torna o próprio corpo da obra.

[Sem título, 2016/2019, xilogravura, P.A., 120 x 40 cm]

O verdadeiro sertão é aquele que nos habita. É aquele da nossa aridez diária em relação aos outros e a nós mesmos. É aquele que dificulta nossa fertilidade de bem-estar. O sertão nosso de cada dia.

Levo o sertão dentro de mim e o mundo

no qual vivo é também o sertão.

[Guimarães Rosa]

Nesta obra de Cláudia Sperb sou arremessado aos sertões. Visualizo o mandacaru florido. Os espinhos agrupados revelam a resistência da metáfora da vida. A travessia deste labirinto pode ser interpretada, por analogia, como a travessia da nossa própria existência.

Mas, Sperb coloriu a agressividade masculina dos espinhos e nos reinventa a beleza feminina das flores do mandacaru. Espinhos falos. Flores vulvas. O mandacaru representa a fecundidade necessária para se sobreviver no sertão.

Nenhuma planta é só superfície. O vegetal que cresce em direção ao Sol, também, cresce em direção ao centro da Terra. Aqui, Sperb salienta a força das raízes do mandacaru. São raízes troncos que, também, alicerçam esta obra gráfica.

Esta xilogravura pintada de Sperb nos remete ao cordel. É cordel por sua representação poética. A obra é uma representante do Movimento Amorial, surgido na década de 1970, que tem o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna (1927 – 2014), como idealizador, o qual procurou valorizar a cultura popular do Nordeste. A xilogravura faz parte dessa história e tem como principais representantes os xilogravuristas J. Borges (1935) e Gilvan Samico (1928 – 2013).

A potência artística de Sperb absorve, com muita sensibilidade, o Movimento Amorial em seu fazer na xilogravura, tendo como traço em comum a expressiva ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do Nordeste, através de suas capas.

Inspirada nas estórias da avó, de que “as flores nascem do arroto das cobras”, Cláudia Sperb se tornou uma grande contadora de histórias. Este é o seu grande dom. Sua arte é contação.

abertura
22 de abril de 2021, 10h

visitação
Até 30 de maio, de terça a sexta-feira, das 10 às 18h, sábados e domingos, das 10h às 18h
Obs.: A Fundação Ecarta segue todos os protocolos de segurança da Organização Mundial da Saúde e órgãos públicos locais. Visitação somente por meio de agendamento.

agendamento
Pelo e-mail contato@fundacaoecarta.org.br e 51. 4009.2970

local
Galeria Ecarta (Avenida João Pessoa, 943, bairro Farroupilha, Porto Alegre – RS)